Nova realidade climática clama por ação sistêmica

O Rio Grande do Sul vive seu mais extenso fenômeno climático extremo. O estado de calamidade completa quatro semanas e está longe de terminar, desafiando os limites da resistência humana. Os alertas sobre o aumento da frequência e gravidade dos fenômenos climáticos são uma pauta antiga, mas até que ponto compreendemos as implicações devastadoras que podem ter em nossas vidas? As diretoras Ana Rosa e Ivi Pauli têm refletido sobre o tema e te convidam a um debate crucial sobre a ação sistêmica para promover a resiliência e adaptação diante dessa nova realidade em tantos lugares.

Autoras: Ana Rosa & Ivi Pauli 

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Enfrentar as mudanças climáticas já não é uma escolha

Evidências científicas irrefutáveis destacam a urgência de enfrentar as mudanças climáticas. Hoje, mesmo com o cenário mais otimista, onde as promessas dos principais acordos são cumpridas, simulações indicam que o aquecimento global poderá chegar perto de 2°C. Isso ainda é perigoso, pois pode desestabilizar os pontos críticos em sistemas climáticos, levando a mudanças irreversíveis no clima global. Eventos recentes sugerem que a prevenção pode estar saindo do nosso alcance e devemos nos preparar para nos adaptar e mitigar eventos climáticos extremos.

“O caos climático parecia algo ainda distante e eu não conseguia compreender, até agora, a proximidade nem as proporções do impacto das nossas ações ou a profundidade de suas estruturas sistêmicas.”

Ana Rosa, Diretora da Meli.

Eventos climáticos extremos no Brasil

No Brasil, eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes em diversas regiões nos últimos anos. Desde a seca histórica na Amazônia até as ondas de calor no Centro-Oeste e Sudeste, passando pelas intensas chuvas e inundações severas recorrentes no Rio Grande do Sul, somos confrontados com evidências claras dos impactos desses eventos extremos em nosso cotidiano. Ana Rosa, fundadora da Meli, menciona algo muito comum a vários de nós: “Em 2018 eu já estava entrevistando especialistas em mudanças climáticas para o podcast que criou as bases para o início da Meli. Mesmo assim, o caos climático parecia algo ainda distante e  eu não conseguia compreender, até agora, a proximidade nem as proporções do impacto das nossas ações ou a profundidade de suas estruturas sistêmicas.”

Experimentando as mudanças na pele

No final de 2023, Ana esteve na Amazônia visitando a sua família e as atividades da Meli no Alto Solimões, vivenciando assim a seca histórica que assolou o bioma, marcada por uma queda dramática nos níveis dos rios. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos, o nível do rio Amazonas e de seus afluentes, como o rio Negro, registrou uma das maiores baixas já observadas. Em Manaus, por exemplo, o nível das águas atingiu apenas 12,7 metros, o menor índice desde o início dos registros em 1902. As queimadas, exacerbadas pela seca, impactaram diretamente as atividades da oficina de agrofloresta no território, impedindo a participação de membros importantes que atuaram na linha de frente do combate aos incêndios. Nascida na região, Cynthia, coordenadora das oficinas de contação de histórias da Meli, navegava atônita pelo Alto Solimões, onde nunca havia visto os rios com tão pouca água.

Onda de calor no Centro-Oeste e Sudeste

Superando a visão tradicional que se concentra apenas na Amazônia, nosso trabalho com comunidades indígenas e locais em diversos biomas e regiões do Brasil nos proporciona uma visão ampla e sistêmica dos eventos climáticos que afetam o país. Há algumas semanas, Luiz Felipe Medina Guarani, Diretor Financeiro da Meli, esteve no Mato Grosso do Sul desenvolvendo atividades em seu território. Acompanhado pela estagiária da organização, Mira Rauhala, do território Sapmi na Finlândia, eles relataram um calor intenso e o céu coberto por nuvens de poeira, características das ondas de calor que têm assolado a região Centro-Oeste. 

Ativa desde o final de abril, essa é a quarta onda de calor no Sudeste e Centro-Oeste em 2024, atingindo níveis recordes. As máximas em cidades como Cuiabá e Corumbá alcançaram 37,2°C e 37,0°C, respectivamente, temperaturas inéditas para o período. No Mato Grosso do Sul e em partes de Minas Gerais e São Paulo, as temperaturas têm se mantido de 3°C a 5°C acima da média devido a um anticiclone, que prolonga o tempo seco e quente. Sem previsão de alívio até a metade de maio, o calor extremo e a falta de chuva criaram condições áridas, afetando a saúde e o cotidiano das comunidades locais.

A transição entre extremos

Ivi, nossa Diretora de Parcerias, testemunhou a transição entre a onda de calor na cidade paulista de São José do Rio Preto, durante a segunda quinzena de abril, e a súbita mudança para intensas chuvas ao pousar no aeroporto de Porto Alegre, em 28 de abril. No dia 27 de abril, Canoas, Novo Hamburgo e Porto Alegre haviam registrado os primeiros alagamentos. Três dias depois, o prefeito de Porto Alegre anunciou a abertura dos primeiros abrigos na cidade, foram registradas as primeiras mortes por causa das chuvas e o Governo do Estado montou um gabinete de crise.

“Foi intenso viver a evacuação de bairros inteiros enquanto o nível da água subia rapidamente. Encontrar meus tios idosos, resgatados por voluntários, num abrigo da cidade, me deu a dimensão do sofrimento das milhares de famílias que perderam tudo o que tinham. Ver a cidade debaixo d’água por semanas é assustador. A chuva simplesmente não parava de cair e os pedidos de resgate não cessaram por dias.”

Ivi, Diretora de Parcerias da Meli.

O caos vivido pelos Gaúchos

Ivi esteve no Rio Grande do Sul até o dia 22 de maio, atuando como voluntária na coordenação de pedidos de resgate de pessoas ilhadas, colaborando com equipes oficiais e voluntárias de socorristas que operavam barcos, jet skis e helicópteros. Apesar do grande número de voluntários de todo o país, foi difícil atender ao alto volume de solicitações de resgate de pessoas e animais, assim como encaminhar as pessoas para abrigos e distribuir as doações.

Dentre os casos mais marcantes de fenômenos climáticos extremos já testemunhados no mundo, o caos climático no Rio Grande do Sul assola 463 dos 497 municípios do estado. Os impactos são devastadores: mais de 2 milhões de afetados, 580 mil pessoas deslocadas, centenas de feridos, 85 desaparecidos e 161 mortes confirmadas até o momento. Mais de 500 mil pessoas ficaram sem água, incluindo 85% da população de Porto Alegre. O estado permanece em estado de emergência, com as águas ainda em níveis alarmantes. Neste momento crucial, a solidariedade de todos é fundamental para dar início à fase de reconstrução. Este será um processo lento e exigirá o engajamento de todas as esferas da sociedade.

A crise atual é a mais severa já registrada, mas não é a primeira. Entre junho de 2023 e maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou dez episódios de chuvas extremas, afetando centenas de municípios de forma devastadora. Além das enchentes, a estiagem é um problema crônico que, em fevereiro de 2023, deixou 70% dos municípios em estado de emergência. Este fenômeno, que aflige os gaúchos há décadas, não tem solução de curto prazo e exige esforços contínuos das autoridades para mitigar suas consequências.

Convergência de Fenômenos Extremos

A tragédia climática no Rio Grande do Sul é o resultado de uma convergência complexa de diferentes fenômenos meteorológicos, cada um desempenhando um papel crucial na intensificação das chuvas e das enchentes na região. Inicialmente, a presença de um cavado, uma corrente intensa de vento, criou condições instáveis no sul, propícias para a formação de tempestades. Em seguida, a onda de calor no Sudeste e no Centro-Oeste impediu que a frente fria vinda do sul se dissipasse, prolongando sua permanência sobre o Rio Grande do Sul e resultando em uma maior quantidade de chuva. Além disso, a umidade proveniente da Amazônia contribuiu para potencializar as precipitações, aumentando o volume de água nas áreas afetadas. Por fim, o fenômeno El Niño, ao aquecer as águas do Oceano Pacífico, elevou os níveis de umidade atmosférica, agravando a intensidade das chuvas e das inundações na região.

O custo da inação

A crescente frequência e intensidade dos eventos climáticos extremos destacam a urgência em lidar com a mitigação e adaptação sistemicamente. A inação diante desses desafios não apenas coloca em risco vidas e meios de subsistência, mas resulta em custos exorbitantes de recuperação. Especialistas projetam que a reconstrução do Rio Grande do Sul, por exemplo, possa demandar entre R$90 bilhões e R$100 bilhões, ou até mais, devido à gravidade do desastre.

Essas são estimativas iniciais que, embora baseadas nas informações atuais e em referências internacionais, apresentam incertezas, já que a tragédia é inédita no Brasil e a extensão completa dos danos ainda não foi totalmente avaliada.

O todo prospera na sinergia de suas partes

Um clima desequilibrado começa com a interrupção dos microclimas, que são essenciais para manter a estabilidade ecológica. Para prevenir eventos climáticos severos, precisamos de uma estratégia de ação sistêmica que enfatize a construção e preservação de microclimas em todos os biomas. Isso envolve a implementação de políticas públicas que apoiem o uso sustentável da terra, promovam o reflorestamento e a agrofloresta, encorajem práticas de conservação e aumentem a conscientização pública sobre a importância da gestão ambiental. Além disso, é crucial que a natureza seja considerada como uma parte interessada nos processos de tomada de decisão em todos os níveis. Ao fomentar esses climas locais e integrar os direitos ecológicos em nossas políticas, criamos uma base resiliente que pode resistir a desafios climáticos mais amplos, garantindo condições de vida acolhedoras para os séculos vindouros.

A atuação sistêmica da Meli

A Meli é uma organização independente que envolve e capacita Povos Indígenas e Comunidades Locais em áreas vulneráveis, liderando um processo de regeneração ambiental de baixo para cima em prol da justiça climática. Colaborando com mais de 60 comunidades indígenas e locais, financiamos projetos liderados pela comunidade que promovem autonomia, manejo florestal e a criação de biomas ambientalmente equilibrados, fomentando a vida e a dignidade humana.

Nosso novo Programa de Bolsas de Polinizadores da Meli se baseia em quatro pilares: agrofloresta, meliponicultura, gestão de projetos e iniciativas lideradas pela comunidade, todos voltados para promover a resiliência e adaptação climática. Representando biomas diversos, nossos polinizadores vêm de regiões como a Amazônia e o Cerrado, cada um trazendo insights e experiências únicas para a mesa. 

Equipados com habilidades de liderança e conexões comunitárias profundas, eles atuam como agentes de mudança, multiplicando iniciativas voltadas para a restauração do equilíbrio e a mitigação dos impactos de eventos climáticos severos. Através de seus esforços coletivos, eles trabalham não apenas para reconstruir microclimas, mas também para nutrir ecossistemas que possam resistir aos desafios de um futuro incerto, promovendo resiliência e sustentabilidade para as gerações futuras.

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3 Replies to “Nova realidade climática clama por ação sistêmica”

  1. É imprescindível que a humanidade mude sua visão e objetivos, pois a muito tempo temos recebido alertas e informações sobre essas possíveis catástrofes, é um sofrimento intenso que essa geração está pagando um preço altíssimo por causa das políticas devastadoras pelo capital e consumo… Nosso planeta não suporta mais exploração e os seres humanos clamam por vidas perdidas… Até quando?! A Mãe Terra não suporta mais exploração… É hora de reverter a história enquanto ainda vivemos.
    Por todas as vidas vivas…
    Abaixo as políticas devastadoras da natureza… Abaixo o capitalismo que ceifa vidas sem limites… Mbora reverter o des envolvimento em um envolvimento de reconstrução e solidariedade…

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