Retomada da Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu 

Os povos indígenas do Brasil têm uma longa história de luta por seus territórios e identidades. Essa também é a história dos Pataxó Hãhãhãe, no sul da Bahia. Sua luta por seu território se estendeu por décadas, passando pela expansão do cacau, pela Constituição de 1988 até 2012. Durante todo este período, muitos conflitos assolaram a região. Em julho de 2023, Ana Paula e Sílvia visitaram a Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu, aprenderam um pouco sobre esta história e compartilham com vocês nesse texto. 

Autoras: Sílvia Lomba e Ana Paula Cipriano 

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A invasão do território que hoje é o Brasil se iniciou na região da Bahia. Os povos que já habitam aquelas terras entraram em contato com os colonizadores a muitos anos. Assim, esses povos foram os primeiros a sofrerem com o genocídio, a perda de terras, as doenças e a colonização. Nesse contexto, povos originários da Bahia tem um extenso histórico de luta para garantir um direito básico: território e reconhecimento oficial de suas identidades pelas autoridades. Um desses povos é o Pataxó Hãhãhãe, na região de Pau Brasil, sul da Bahia.

Imagem 1: Ana Paula, Sílvia e Olinda na região da Água Vermelha

Em julho deste ano, Ana Paula e Sílvia visitaram o projeto ‘Alimentar para o bem viver’ na Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu. Com essa experiência, tiveram a oportunidade de aprender com Olinda e Samuel, moradores do território, sobre a história da região, além das problemáticas enfrentadas nas últimas décadas do processo de retomada na terra indígena.

Nos anos 1920, a Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu foi demarcada com 54.105 hectares. Depois de alguns anos, fazendeiros e grileiros foram expulsando os indígenas e se assentando dentro da terra indígena, o que gerou muito conflito com os habitantes da TI. Um agravante da situação foi a ação do governador do estado Antônio Carlos Magalhães, que distribuiu títulos de propriedade aos fazendeiros e, portanto, “legalizando” sua invasão. Nesse contexto de violência e negligência, por não terem acesso à terra, muitos dos indígenas tiveram que vender seus serviços para fazendeiros e pessoas da região, sendo pedreiros, lavadeiras, vaqueiros e escondendo suas origens por medo de violência. 

Imagem 2: Uma das fazendas da TI Caramuru-Paraguaçu

Alguns Pataxó Hãhãhãe permaneceram na TI, principalmente na Aldeia Bahetá que se encontra em uma região que sofreu menos com as invasões. A partir de 1982, iniciou-se uma movimentação dos indígenas para reaver seu território roubado pelos fazendeiros, trazendo de volta para a TI os parentes que tinham sido expulsos e pressionando o governo pela revogação dos títulos distribuídos anteriormente. É importante pontuar que a Constituição de 1988 estabeleceu o direito originário, inalienável e imprescritível dos povos indígenas às suas terras, fortalecendo a luta dos Pataxó Hãhãhãe pelas terras ocupadas. 

Imagem 3: Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu

Todos estes conflitos fundiários na região não foram pacíficos. A violência sempre foi presente nestes choques, resultando em várias mortes, incluindo de diversas lideranças indígenas. No entanto, eles conseguiram ir reconquistando seu território por meio da força, mesmo com a falta de apoio e suporte da polícia local. Os indígenas da região passaram muitos anos retomando fazendas e sendo retirados pela polícia militar a mando dos fazendeiros. Durante esses anos, apesar de conseguirem retomar parte do seu território, a região conhecida como Rio Pardo ainda estava sob domínio dos fazendeiros e generais locais. 

Estes fazendeiros tinham uma grande influência na política local, muitos eram políticos ou amigos de políticos influentes. “Foi feito o fechamento da região de Água Vermelha, foi feito o fechamento da região das Alegrias com Itajú, ali a Aldeia Bahetá, fechou-se. Ai depois partiu-se pra aqui, Nailton também fez uma chamada para aqui para a região do Toucinho, ai fechou-se, então tirou os fazendeiros dessa região. Ai ficou a região do Rio Pardo, porque essa era a região pior, porque era onde estavam todos os fazendeiros perigosos.” contou Maria Muniz no documentário ‘Retomar para Existir’, de Olinda Tupinambá.

Imagem 4: Maria Muniz

Após anos de negligência do governo, em 2012 os indígenas da região intensificaram a retomada das suas terras em toda a região do Rio Pardo, que estavam transformadas em fazendas, em um conflito extremamente violento entre pistoleiros e indígenas. Após meses de conflito, os indígenas e aliados conseguiram retomar o restante da área da TI que ainda estava sob controle dos fazendeiros. Após muita violência e pressão no STF, e apesar de o pedido anterior do Governo da Bahia pelo adiamento da votação, finalmente foi votada a anulação dos títulos de terras dos fazendeiros a pedido da ministra Carmen Lúcia. Após a anulação dos títulos, ainda foi necessário pressionar o Estado para que os invasores remanescentes fossem expulsos da terra indígena. Samuel Wanderley conta que quando os fazendeiros foram retirados de lá, também foram retiradas cerca de 7000 cabeças de gado, relatando a grande resistência dos fazendeiros em cumprir as decisões do governo. 

Imagem 5: Vaqueiros retiram parte das 20 mil cabeças de gado de uma das fazendas retomadas (Fonte: CIMI)
Imagem 6: Gado criado atualmente na Terra Indígena (Foto: Samuel Wanderley)

Esse longo conflito deixa marcas nos Pataxó Hãhãhãe que atualmente moram na TI. Apesar de não estarem mais na mão de invasores, a divisão da terra em fazendas se manteve, o que afeta a vivência coletiva dos moradores. A segregação do território prejudica na vivência dos moradores, dificultando o seu acesso e a manutenção de um centro de convivência na região, onde poderiam realizar eventos. Além disso, com a longa invasão dos fazendeiros, a degradação ambiental que ocorreu no território foi gigante, tendo grandes áreas de Mata Atlântica desmatadas para a criação de gado, o que se mantém atualmente. Por último, com a facilidade de conseguir créditos e empréstimos para a agropecuária, muitos indígenas se voltam para a criação extensiva de gado como forma de subsistência. Nesse contexto, o conflito por território abarca dimensões muito maiores do que a terra, envolvendo a mudança de costumes e fontes de rendas para os povos originários. 

Há, no entanto, iniciativas para mitigar as dificuldades encontradas no território dos Pataxó Hãhãhãe. Está acontecendo uma retomada cultural, para que as novas gerações aprendam as tradições do povo. Além disso, o Projeto Kaapora, comandado por Olinda Tupinambá e Samuel Wanderley, é uma área de restauração ambiental dentro da TI, servindo de modelo para outras regiões. Ainda, o local está se tornando um ponto de encontro da comunidade, com a ocorrência de eventos culturais e ambientais. Com estes esforços, já é possível perceber um aumento de interesse em iniciativas agroflorestais dentro da aldeia e uma maior coletividade dos moradores. 

Imagem 7: Área desmatada na Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu

A luta dos Pataxó Hãhãhãe pela sua terra é um exemplo de resistência. Essa história é um exemplo de porque a inconstitucional PL 2.903/2023, conhecida como Marco Temporal, não podia ser aprovada. A aprovação dessa lei legalizaria mais uma vez a invasão de terras e a violência contra os povos originários, que a 523 anos são desrespeitados em sua própria casa. O veto parcial feito pelo Presidente Lula diminui o problema, mas não o resolve, visto que mantém a possibilidade de atividades econômicas de não indígenas em cooperação com indígenas. Isso pode ser perigoso, visto que estas “cooperações” costumam não ser pacíficas e podem violar o usufruto exclusivo dos povos indígenas a sua terra. Além disso, o texto aprovado também afirma que o usufruto exclusivo não se sobrepõe ao interesse da política de defesa, o que também pode ser usado para justificar intervenções e ocupações militares nos territórios. O Estado brasileiro historicamente falha com os povos originários, e o veto parcial feito tende a manter essa falha.

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