Bandeira de aço – Diários de São Luís

Em 2018 Haroldo Barbosa esteve em São Luís do Maranhão e escreveu sobre sua passagem no bit autônomo. Ele escreveu “um misto de crônica, diário de bordo e roteiro turístico não ortodoxo” que vai guiar nossa visita pela ilha.

Autor: Haroldo Barbosa
Original aqui.

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Os Bois

Uma das melhores formas de conhecer uma cidade, uma região, é pela música local. De preferência aquela exposta e à mostra no meio da rua, nas praças. São Luís tem uma cultura muito forte, com destaque para o reggae e, óbvio, para o Bumba-meu-boi.

Na Praça Deodoro você encontra uma profusão de camelôs, muitos deles com uma caixa de som, um notebook e vários discos de boi no HD. Eles passam de forma mágica para seu pendrive por dois, três ou cinco contos. Boi da Maioba, Boi de Axixá, Boi de Santa Fé e o famoso Boi de Maracanã (Batalhão de Ouro). Os bois têm sotaques (estilos), que se definem pelas formas, vestimentas, instrumentos: orquestra, baixada, costa de mão, matraca… Do que mais gostei foi do boi de matraca. O Bumba-boi, como o carimbó, o samba e a capoeira,  já foi perseguido por ser coisa de preto, de mestiço, da ralé. Hoje é patrimônio cultural imaterial da humanidade.

Vi no Centro Histórico, na calçada do Bar da Faustina (aquele abraço seu Luís), o Boi de Santa Fé. Ritmo contagiante e uma moça com uma fantasia de caboclo de pena que, apesar do nome, pesa  imensamente. Ela dançou por horas. À meia-noite, ao descerem do palco, seguem tocando até os ônibus e caminhões abertos e vão para o bairro de origem. Mais uma dose de tiquira (bebida alcóolica local) e teria ido junto.

Já na Praça Maria Aragão, após uma apresentação de Nando Cordel, vi o inesquecível Batalhão de Maracanã. O chão tremeu. Se você ainda conhece e não ouviu esses bois e caras como Coxinho, Humberto de Maracanã, Mestre Zé Olhinho e outros, corrija essa lacuna o quanto antes.

Um adendo: na minha imensa ignorância, não conhecia o disco Bandeira de Aço. Depois da passagem pela Praça Deodoro, o Bandeira quase não saiu mais dos fones de ouvido durante a estadia em São Luís. De início, achei que as composições eram de Papete (que interpreta), Não são. Fiquei vidrado em letras enigmáticas de músicas como “Bandeira de Aço” e “Flor do Mal”. Me inculcou demais um verso: “Eu e minha bananeira, duas bandeiras do mal”. Pois, por obra e graça do amigo Ricarte, nesse dia na Praça Maria Aragão, fui apresentado ao César Teixeira, compositor de ambas. Não tive dúvidas e perguntei sobre o verso. A explicação começou com “você já reparou que bananeira tem cheiro de sexo de mulher?”. Fiquei de cara. Estou até hoje. César Teixeira, um dos grandes da música regional e universal. Acessível e paciente. Ao menos comigo nesse dia.


Dica: Se for a São Luís, procure ir em junho quando os Bois se apresentam nas festas juninas. Como diz o Parahyba Kid Medeiros, a melhor brincadeira de boi não é vaquejada. É Bumba-meu-boi!

Casa das Minas

Era sábado. Como fui de ônibus, a dica foi descer no Socorrão e pegar a rua de São Pantaleão. Procurei algo chamativo e nada. Encontrei enfim um casarão de cor verde com uma discreta placa de azulejo. Decepção. Maioria dos janelas e portas fechadas. Até então eu tinha ideia que ia a um museu. Procurei e enfim encontrei uma porta com uma das bandeiras abertas. Não vi campainha. Bati palmas, chamei. Nada. Então, fui entrando. De uma espécie de corredor vinha saindo uma moça que perguntou: veio visitar? -Sim – Vá por ali.

Segui até uma cozinha com varanda. No chão, um fogo de lenha com um caldeirão fervendo. Aparece uma senhora muito simpática e vai logo explicando: o que ferve na panela não é comida de obrigação, que hoje não é dia de. É só um mocotó para receber a filha e uns amigos.

E como se me conhecesse há anos, vai contando a história da Casa das Minas, que é mais ou menos assim: “Fundada em meados do Século XIX, por uma mulher africana chamada Maria Jesuína, que veio ao Brasil como escrava e que, segundo Pierre Verger era na verdade a Rainha Nã Agontimé, Esposa do Rei Agonglô do Daomé e mãe do Rei Guezô. No documento mais antigo de que se tem notícia sobre a Casa das Minas, a escritura do prédio da esquina data de 1847, estando em nome de Maria Jesuína e suas companheiras, que, segundo relatos, eram africanas.”

Na Casa habitam divindades chamadas voduns, que são de cinco famílias. “A Casa das Minas (ou Querebentã de Zomadonu) possui uma tradição matriarcal, ou seja, só é governada por mulheres e somente mulheres podem ser possuídas pelos voduns (os homens só podem participar do culto tocando os instrumentos musicais litúrgicos).” Embora o culto dos voduns seja de origem Jeje, como as sacerdotisas (vodunsi) eram chamadas pretas minas, terminou sendo chamado também Tambor de Mina.

Hoje o culto está extinto, mas a senhora que me recebeu, dona Socorro, e seu marido, Euzébio, neto de Dona Amélia (uma das últimas vodunsis), levam as obrigações da Casa, que duram o ano todo.

Por exemplo, no Dia de São Pedro, segundo ela, vêm aproximadamente 25 Bois dançarem na Casa. – “Onde arrumar comida pra esse povo todo? O Estado não ajuda, embora a Casa esteja tombada pelo Iphan desde 2002”. Ela me informa ainda que antes (provavelmente no período da ditadura), quando os Bois eram proibidos de dançar na rua, vinham no São Pedro e dançavam, meio escondidos, no quintal. A Casa é um polo de resistência que atravessa aproximadamente dois séculos.

Há um espécie de acordo entre os voduns e as entidades/divindades de outros cultos de matriz africana e que não se manifestam na Casa. Não há estátuas ou imagens esculpidas, exceto os que estão em um altar, que são os da obrigação do momento. Afora isso, algumas fotos das vodunsis e familiares e cinco potes que ficam em um parapeito na cozinha. Um para cada família e sempre com água limpa e fresca. No quintal há uma árvore em um cercado, que também é espaço dos voduns. Além disso, os famosos tambores, que segundo dona Socorro, vieram de Daomé, hoje Benin. São estes tambores que dão nome ao romance de Josué Montello, “Os tambores de São Luís”. Não só vi os tambores como inclusive sentei no mesmo banco que o personagem central do romance, Damião, sentou.

Ninguém passa pela Casa das Minas e saí sem uma forte impressão, seja religioso, agnóstico ou ateu. E as palavras que me vêm são respeito, força, resistência. A sensação de um conhecimento e tradição que lá, de alguma forma, permanecem. Me senti acolhido.

Para não alongar demais, deixo para os próximos Diários, um pouco da história de Donana Jansen, reggae, tambor de crioula, a peregrinação por museus e igrejas e, com certeza, mais bares! Em compensação, ficam: a dica da leitura imperdível d’Os tambores de São Luís e a letra de uma toada fantástica do Humberto de Maracanã com louvação à Casa das Minas.

Dicas do autor:

Reis da Encantaria – Toada de Humberto de Maracanã

Sobre o romance histórico “Os tambores de São Luís”:
“O escritor maranhense apresenta toda a saga do negro, desde a sua origem africana, sua viagem nos navios negreiros, até a chegada em nossa terra. ‘Os tambores de São Luís’, cuja narrativa transcorre durante uma noite e algumas horas da manhã seguinte, conta, em tom épico, uma história de três séculos de lutas e insurreições.”

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