Do Rio a estrada: Um relato Amazônico 

A Amazônia interligada pelos rios vem dando lugar à Amazônia conectada por estradas. Vamos refletir sobre o ritmo e o significado da mudança dessas paisagens.

Autor: Gabriel Costa
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As duas Amazônias e dois modos de viajar pela região, no balançar de um barco ou no sacolejo de ônibus  

A Amazônia é a maior floresta tropical do mundo, com a maior biodiversidade, cobrindo aproximadamente 50% do territorial brasileiro. Mas, disso provavelmente o leitor já sabe. O que passa batido, na maioria dos editoriais dos grandes jornais, na mídia no geral e no imaginário popular é o seguinte: a Amazônia brasileira é lar de 23 milhões de pessoas, um lar para uma população semelhante à da Austrália, com uma multiplicidade de religiões, etnias, dialetos, visões de mundo e contrastes. 

Um dos contrastes mais gritantes é o entre a “Amazônia dos Rios” e a “Amazônia das Estradas”. Esse contraste permeia as vivências desse Amazônida, habituado as longas viagens, que escreve diretamente da interseção entre esses dois Mundos, Belém do Pará. Se na Europa Ocidental, todos os caminhos levam a Roma, aqui a maioria dos caminhos leva a Belém. 
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A dança das águas: Esse rio é minha rua

Entretanto, o que seriam cada uma dessas divisões? A “Amazônia dos rios” seria a porção da região onde ainda predomina o transporte e a lógica do deslocamento fluvial. Os rios regulam o ritmo da vida, mais lento e cíclico, baseado nas cheias e vazantes anuais. O fluir das águas alimenta a população e ordena a organização das cidades, especialmente as mais antigas, com suas ruas voltadas para os portos e mercados que se concentram nas margens dos grandes corpos d’água.

Os rios regulam o ritmo da vida, mais lento e cíclico, baseado nas cheias e vazantes anuais.   

Essa arquitetura tipicamente amazônica pode ser observada no coração de Belém, casa da maior feira da América latina, o Ver-o-Peso, com sua pedra do sal e do peixe, que abre alas para uma densa, meandrosa e barulhenta área comercial – o homônimo bairro do comercio – onde, reza a lenda, pode-se comprar de tudo. Ou em Mocajuba, no alto rio Tocantins, cidade com grande influência dos remanescentes de quilombos, que tem em seu centro, as margens do rio, um grande mercado de peixes e amplos trapiches onde se pode alimentar os botos Tucuxi, alegria dos turistas.

Em Mocajuba, com os botos (foto de Rayda Lima) 

Ainda mais ao norte, no Marajó, em suas maiores cidades, Breves, Portel e Soure, não é incomum que o fluxo de mercadorias e pessoas seja regulado pelos grandes barcos de ferro que fazem a travessia entre o arquipélago e a capital do estado, em seu bate e volta diário. A própria identidade das cidades muitas vezes está ligada à sua vocação ribeirinha. Em Vigia, mais antiga cidade “europeia” do estado, onde o símbolo municipal é a “Vigilenga” uma embarcação robusta que permite a pesca em Mar aberto.  
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O outro lado do espelho: A Amazônia das Estradas

Porém, nem tudo são flores, ou nem tudo é rio nessas terras tropicais. A partir dos anos 50 o governo brasileiro adotou uma série de políticas visando a “integração” e colonização das “terras selvagens” do Brasil. Parte dessa estratégia foi a construção da nova Capital Federal e de sua grande estrada, a BR 010, transbrasiliana ou somente rodovia Belém-Brasília. Estava ali iniciada sob os auspícios do então presidente Juscelino Kubitschek a “Amazônia das Estradas”, simbolizada na via que iria “arrombar a selva e unir o país de norte a sul”.

Porém, nem tudo são flores, ou nem tudo é rio nessas terras tropicais. 

A estrada, iniciou-se em duas frentes uma partindo de Belém, liderada pelo médico Waldir Bouhid, e outra partindo de Brasília, liderada pelo engenheiro Agrônomo Bernardo Sayão que nas palavras do autor Leonencio Nossa, morreu esmagado por um Jatobá que soterrou seu barracão, em uma “vingança da floresta”, próximo a Açailândia, no Maranhão, porta de entrada na Amazônia maranhense, região única. A vizinhança já foi abordada por aqui em um texto anterior.

Hoje, a Belém-Brasília é uma das vias mais importantes para o transporte de cargas no país. Mas, ao longo dela, as árvores são raras, bem, ao menos as nativas. Na “Amazônia das Estradas”, localizada especialmente ao longo da referida estrada, sua “irmã em tragedias” – a transamazônica – e adjacências no sudeste Paraense, a lógica que reina é a do transporte rodoviário. A vida é construída na presa da produção de comodities num acelerado cotidiano linear. O rio foi substituído pelo asfalto ou piçarra onde as novas cidades, alimentadas por migrantes vindos do Nordeste cresceram. As “bandeiras verdes”, referência a uma “terra prometida” relatada em um trecho da famosa profecia do religioso nordestino Padre Cicero que motivou ondas migratórias para a Amazônia durante os séculos XIX e XX, não erma mais tão vistosas ou tão livres assim. 

A vida é construída na presa da produção de comodities num acelerado cotidiano linear.

Emplo de paisagem dominada pela soja e pela pecuaria, em área de fazenda, próximo a Floresta em Apui, Amazônia (de Bruno Kelly, Amazónia Real)

A viagem: Um Tour de Force pela desolação Amazônica

Essas questões sempre povoaram minha mente frente a monotonia das longas 12 horas através da Belém-Brasília separam Marabá, minha cidade natal, da capital. Um dos possíveis caminhos de quem deseja fazer essa viagem. Minha cidade, Marabá, foi palco inicial dessa transformação de rio em estrada. A cidade velha, fundada no início do século XX, conserva o padrão ribeirinho, voltada ao rio Tocantins. Já os bairros mais novos são voltados a Transamazônica.  

Partindo de lá de ônibus, ainda na PA 222 passamos por alguns Municípios, Bom Jesus do Tocantins, lar do último grande fragmento de floresta nativa até próximo a Belém, a terra indígena Mãe Maria, um dos últimos baluartes de um passado nem tão distante. Todavia, a digressão dura pouco. Logo alcançamos a pequena Abel Figueredo e em sequência Rondon do Pará. Os areais, os bois e os silos de soja dominam a paisagem até darem lugar ao imenso deserto verde dos eucaliptos de Dom Elizeu. Parabéns, desembocamos na BR 010. 

Os areais, os bois e os silos de soja dominam a paisagem até darem lugar ao imenso deserto verde dos eucaliptos de Dom Elizeu.

Em suas margens, a exceção das manchas de floresta e do calor abrasador, pouco se lembra da Amazônia dos rios. A paisagem segue rural e urbana, como que num colar de contas se seguem as pequenas vilas até alcançarmos Ulianópolis e seu ramal para PA 125, que corre paralela a nosso caminho, alcançando a Capital do agro e do Minério, Paragominas. Formada pela junção das ascendências de seus fundadores, Pará, Goiás e Minas, a cidade já foi a maior desmatadora do Pará e hoje é considerada “líder em políticas verdes” como incentivos ao reflorestamento, regularização fundiária através do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e redução do desmatamento ilegal, apesar de não existir mais tanto “verde” de fato por lá. 

Seguindo, já extenuados pelo sacolejo e pelo desespero existencial, resumido no pensamento de “tudo isso já foi floresta um dia?” alcançamos Ipixuna do Pará, Aurora do Pará e finalmente Mãe do Rio. Essa cidade é cortada pelo Igarapé Homônimo, um tributário do poderoso Rio Guamá. Aqui os domínios começam a mudar e teremos uma zona de transição entre os dois mundos, do rio e da estrada, que seguirá até a capital.  

“Tudo isso já foi floresta um dia?”

Em mais uma hora de vigem alcançamos São Miguel do Guamá, município onde nasce o poderoso rio que desagua as margens da Capital, na Baia do Guajará, banhando o Ver-o-Peso, lá do início do texto. Os elos vão se encaixando à medida que passamos por Santa Maria do Pará, Castanhal (cidade que é um verdadeiro Hub rodoviário), Santa Izabel e Benevides já na Região metropolitana de Belém.
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A chegada 

A paisagem até alcançarmos Ananindeua, cidade conturbada a Belém e finalmente algum descanso, alterna o verde da beira dos caudalosos rios, por onde correm pontes estaiadas, e o cinza da paisagem urbana, com menos boi e mais gente. Ao fim, chegamos.

Na Marabá Pioneira, cidade natal do autor (de Nubia Suriane)

Sempre que piso em Belém, muito do que eu escrevo aqui passa por minha cabeça, mas, o vislumbre mais triste e o de que a Amazônia das estradas cresce cada vez mais, enquanto o rio regride. Alimentada pelo agro predador e por novos velhos projetos de integração regiões inteiras da região passam pelo mesmo processo da minha cidade natal e há depender da toada em que estamos teremos mais relatos como esse.  

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Foto Título: Nubia Suriane, edição Ícaro Uther 

Fontes:
(1) Memorial da Democracia: Belém-Brasília une País De Norte a Sul. Disponível em: http://memorialdademocracia.com.br/card/belem-brasilia-rodovia-de-integracao 
(2) Mata!: o Major Curió e as guerrilhas no Araguaia / Leonencio Nossa. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 

2 Replies to “Do Rio a estrada: Um relato Amazônico ”

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